Almeida e o 25 de Abril – Crónica

Tenho o raro privilégio de poder dizer o que penso, de ser lido e de incentivar quem, por modéstia ou timidez, cala testemunhos relevantes da nossa vida coletiva. Alguns julgam que outros o fazem e, assim, levando memórias, partiram muitos, sem se darem conta de que a História também se faz de retalhos da vida de cada um de nós.

Hoje recordo Almeida, concelho onde a Pide perseguia e torturava emigrantes, quando os prendia por fugirem à miséria, a tentarem chegar àquela Europa onde o nazi/fascismo findara em 1945, para lá dos Pirenéus. Prendia-os em Vilar Formoso, ali onde a Europa começa a ser Portugal.

Em 25 de Abril presidia à Câmara Municipal o Dr. Crisóstomo, notário, professor do colégio, indefetível salazarista e acrisolado fascista. Afirmava que considerava inimigo pessoal quem não fosse salazarista. Os adversários chamavam-lhe, por isso, “o Inimigo Pessoal”, enquanto os alunos do colégio o apelidavam de “o pai da nossa filha”, por ser habitual referir-se à filha, durante as aulas, por “a nossa filha”, aliás, colega deles.

No mês de agosto de 1974, em nome do MDP/CDE, tive a honra de presidir a todas as sessões de esclarecimento e comícios que se fizeram em Almeida, tendo várias vezes a ladear-me duas figuras de enorme dimensão política e histórica, o Dr. João Gomes, pelo PS e o Dr. Mário Canotilho, pelo PCP, assumindo a dupla função de membro do MDP e moderador, em sessões de esclarecimento. O PSD ainda não existia ali, e a legitimidade revolucionária era caucionada pelo capitão do MFA, Augusto Monteiro Valente, que recusou sempre integrar a mesa ficando entre a multidão, intimidado pelas ovações que recebia, ele que teve a coragem de sublevar sozinho o RI5 da Guarda, prender o comandante e seguir para Vilar Formoso a cumprir a missão do MFA, prender os pides e encerrar a fronteira.

Foi, aliás, no dia 25 de Abril, já com a fronteira fechada pelas tropas do MFA, que três professoras de Almeida regressavam das compras em Fuentes de Oñoro e uma delas se dirigiu ao aspirante miliciano que vigiava a fronteira terrestre, em tom autoritário, para dizer ao comandante que era a esposa do Sr. Presidente da Câmara, e que queria entrar. O aspirante sorriu, a dizer-lhe que era melhor não invocar essa qualidade, e lá foi com os nomes das docentes a obter o “Autorizo a entrada”, na mesma folha de papel pardo em que tinha escrito os nomes, folha assinada pelo capitão, na gloriosa data, e entregue, quando entraram, à professora Conceição Vilhena que a guardaria afetuosamente.

Num desses comícios foi decidida a destituição do presidente da Câmara e ovacionada a Comissão Administrativa, encabeçada pelo veterinário José Luís Terreiro, seguido do prof. Alberto Vilhena e de outros cidadãos do concelho, aceites por consenso, durante a noite anterior, em casa do comerciante António Ferreira. Na mesa, foram meus vogais o velho capitão Barroco e o padre Inácio Vilar, hoje advogado na Guarda, integrando a Comissão Administrativa o irmão, Francisco Vilar, atual arcipreste e abade de Almeida, dois padres de sólida formação democrática, cuja participação foi determinante.

Coube-me elaborar a ata do comício que, depois de aprovada, foi enviada ao Governo Civil da Guarda com a descrição da decisão popular e os nomes dos membros da futura Comissão, a ser homologada pelo MAI. Foi-me devolvida, para incluir menos nomes, manobra dilatória a que não cedi e que visava impedir a demissão do ‘Inimigo Pessoal’.

Foi um período de ansiedade, quando os reacionários procuraram difamar os membros propostos e apelidaram de garotos os ativistas, entre os quais fui especialmente visado. O Dr. Crisóstomo ainda foi a uma procissão com as insígnias de Presidente da Câmara, convicto de que os ‘inimigos pessoais’ tinham fracassado no seu município.

Graças ao empenho do dirigente do MDP, Carlos Ferreira, que logo levou a despacho a lista, esta foi homologada pelo MAI, Dr. Magalhães Mota, na última aprovação havida, antes de Sá Carneiro conseguir impedir a forma expedita de destruir o aparelho fascista das Câmaras Municipais.

Foi a mais saborosa recordação do PREC, a fazer esquecer o comício na Miuzela, onde me aguardaram familiares e amigos e, quando enalteci, na defesa da democracia, entre outras virtudes, a liberdade religiosa, vi abandonar o salão cheio, perante o gáudio geral, o António Amaro, aos gritos: Viva Cristo-Rei! Viva Cristo-rei! Abaixo o comunismo!

O José Luís Terreiro e, depois da transferência deste por razões profissionais, o Alberto Vilhena presidiram à comissão democrática até às primeiras eleições autárquicas livres, que deram a vitória… ao CDS, enquanto o Dr. Crisóstomo procurou nova comarca onde certamente encontrou ‘amigos pessoais’.

Ponte Europa / Sorumbático

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