Arábia Saudita: o ‘golpe palaciano’, as réplicas regionais e o oculto impacto global…

A notícia de que o príncipe herdeiro saudita, Mohammad bin Salman (MbS), está a levar a cabo uma purga no reino das Arábias surge como uma bomba e mostra como profundas dissensões no interior dos vários ramos da ‘família Saud’ podem estar a vir ao de cima com consequências imprevisíveis link.
 
Na realidade, a velha família Saud que, desde tempos ancestrais governava várias regiões na região (Negéde e Hejaz), viria a adquirir uma hegemónica preponderância na península após o fracasso da ‘revolta árabe de 1916-18’, contra o domínio otomano e apoiada pelos Governos britânico e francês. O pretexto foi a ‘tutela’ dos lugares sagrados do islamismo (Meca e Medina).
 
A revolta árabe - contemporânea da I Guerra Mundial – e encabeçado por Husseine (então xarife de Meca) viria a acabar com uma repartição da Península entre a França e a Grã-Bretanha (acordo de Sykes-Picot), traindo promessas anteriormente assumidas com os reinos nómadas.
A mudança na configuração territorial surge em consequência da queda do califado otomano e da consequente repartição orquestrada entre as potências vencedoras da I Guerra Mundial, na Conferência de Paris (1919).
 
Em 1932 - há 85 anos - Abdul Aziz Ibn Saud, que não se envolveu diretamente na ‘revolta árabe’ por não aceitar uma aliança com Husseini (questões tribais), consegue unificar a península arábica, dando origem ao actual reino saudita. Estabelece um regime sucessório que passa pelo seu filho Saud bin Abedelaziz al Saud e a continuidade na 'frataria imanente da Casa de Saud’,  prossegue através dos outros filhos, na verdade, meios-irmãos do primeiro sucessor, já que o rei Abdul teve uma vasta descendência, de várias mulheres (oficialmente, 20!) .
 
Em 1933, com a criação da Aramco (companhia petrolífera americano-árabe), a família saudi , sob a tutela patriarcal de Abdul Aziz Ibn Saud, abandona a itinerância nómada pelo árido deserto arábico para assentar arraiais em Riade e, de conluio com os EUA, governar o petro-reino através um sistema feudal, erguido sobre uma variante radical do islamismo (o waabismo) a Península.
 
No fim da II Guerra Mundial no encontro ocorrido em 1945, a bordo do cruzador Quincy, o estatuto negociado entre o reino saudita dirigido por Faisal e Roosevelt veio cimentar a monarquia do Golfo e consolidar os negócios do petróleo que tem alimentado a postura saudita no Mundo e estabelecer a primeira base aérea dos Estados Unidos na Arábia.
 
Faisal que se esforçou por tirar o reino do sistema tribal e feudal acabaria assassinado por um príncipe, seu familiar.
 
A partir daí a estabilidade – mas também a imutabilidade – foi assegurada através da continuidade pela via dos 7 irmãos . Isto é, dos (meios)irmãos nascidos do ramo da 'família Sudairi'. Salman o ainda rei é um dos filhos de Hassa al Susairi.
Uma fórmula que ab initio continha um limite temporal correlacionado com a extinção de uma geração. Neste momento, Salman parece ser o último representante dessa continuidade dinástica.
 
O que se verifica hoje é, pois, o ajuste de uma nova fórmula que traduz a relação de forças no interior da Casa de Saud, os mecanismos tribais da sua perpetuação no poder e traduz as suas diferentes ligações dos príncipes aos 'amigos americanos'.
 
Começou, portanto, a transição para uma nova geração de príncipes. Mohammad bin Salman (MbS) será o cabecilha da nova geração Saud e já foi nomeado (pelo seu pai) príncipe herdeiro. O importante, contudo, não é o personagem em si mesmo mas saber que tipo de títere é. As primeiras impressões não são muito favoráveis e quer a guerra iemenita, quer o ‘bloqueio’ ao Qatar são maus prenúncios.
 
As questões sucessórias no reino arábico não são, neste momento, tão lineares como seriam alguns decénios atrás. Ultrapassam largamente uma ‘questão familiar’.
Hoje, existem, para além das questões sucessórias comuns a todas as monarquias, situações que estão para além da continuidade e dizem respeito à sustentabilidade (económica e financeira) do regime. Facto que é tanto mais importantes quanto é verdade que o reino saudita rege-se por ancestrais padrões absolutistas onde o rei é tudo: chefe de Estado, primeiro-ministro e o elo de ligação com a hierarquia religiosa (guardião dos lugares sagrados) que é, desde a origem, uma pedra basilar do reino.
 
A purga levada a efeito pelo príncipe herdeiro tem várias interpretações. Desde a família Bin Laden que também incorpora as detenções até ao príncipe mais rico das Arábias tudo se encontra em ebulição e é difícil dissociar estes ‘incidentes’ de uma estratégia global para o Médio Oriente que ultrapassa largamente o reino do deserto (e do petróleo). Aliás, o sequestro do primeiro-ministro libanês - que não pode ser dissociado desta onda de purgas - vem confirmar a cavalgada para o desastre nesta Região.
 
A reciclagem de regimes tendo por leitmotiv a corrupção é extremamente falaciosa já que essas manobras visam substituir uma elite (corrupta) por outra. Mudam-se as moscas…
 
Mas a ebulição saudita transcende as motivações económico-financeiras locais e entronca-se nos frágeis equilíbrios políticos internacionais. O diferendo árabe-persa é histórico e assume, no presente, novos desenvolvimentos. O Médio Oriente é um barril de pólvora e aí disputa-se, acerrimamente, a liderança regional com alinhamentos internacionais díspares e, acima de tudo, incongruentes.
 
A Arábia Saudita está no ‘olho do furacão’ da política americana para o Médio Oriente e lateralmente envolvida numa disputa sem quartel com um ineludível substrato religioso e que, grosso modo, se exprime pelo confronto entre xiitas e sunitas.
As questões regionais tradicionalmente colocavam em permanentes confrontos árabes e judeus esfriaram e, presentemente, a linha de clivagem passa pelo interior do Islão.  O conflito sírio, a tragédia iemenita e mais recentemente a ‘questão libanesa’ (um epifenómeno da refrega irano-árabe) são causas remotas que influenciam a ‘dança sucessória’ da casa de Saud.
 
A ‘depuração’ de uma interminável e parasitária ‘família real saudita’ (que envolverá mais de 10 000 membros) não está divorciada de um projetado (e não revelado) esforço de guerra condicionado por opções regionais (liderança).
Visto por este prisma as turbulências sucessórias que ocorrem em Riad não passam de preparativos para a guerra.
 
O dito ‘Ocidente’ não deverá alienar-se destas circunstâncias e terá de fazer uma leitura internacional em conformidade com uma postura civilizacional que privilegie a paz e controle os apetites económicos. Esta clarividência está cada vez mais ausente no concerto das nações.
 
Há muito que as questões internas do reino saudita têm reflexos diretos em todo o Médio Oriente e repercussões mundiais. Não vamos falar dos problemas da génese do terrorismo que sofreram um solavanco desde o 11 de Setembro, continuam a inquinar o Mundo e consomem abundantes esforços políticos, bélicos e de segurança no panorama político internacional. Todavia, as ‘turbulências sucessórias em Riad’ são mais um indicador de que a Paz está ameaçada e que algo de novo está na calha.
 
Interessará destrinçar as subterrâneas cumplicidades que passam pela UE, EUA. A Rússia, um outro parceiro destes instáveis equilíbrios regionais, mantem-se fora das luzes da ribalta, mas acabará por envolver-se.

A miscelânea do negócio do petróleo com o das armas pode ser um muito mau prenúncio para a Humanidade. Não é um problema a circunscrever à 'Casa de Saud'.

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