África e as recentes ‘transições’ …

Sendo África um continente martirizado pelo subdesenvolvimento histórico, crónico e como dizem os economistas ‘sustentado’ e, na atualidade, objeto dos desenfreados apetites da globalização encontra-se encurralado no miserável papel de continuar a ser um imanente reservatório de matérias-primas a explorar pelo primeiro Mundo (dito desenvolvido).
 
Concomitantemente, é aí que se encontram os piores rendimentos per capita do planeta, isto é, onde a mancha de pobreza é endémica, onde os indicadores sociais tem abstrusas expressões e onde as perspetivas de futuro morrem nos bolsos de uma ‘classe dirigente’ e organizações empresariais satélites do poder, tornou-se um antro de instabilidade política mais por mecanismos de rotatividade financeira e manutenção de oligarquias do que por renovações políticas ou democráticas.

Desde narco-Estados encobertos a cleptocracias mais ou menos disfarçadas, entremeados por regimes ditatoriais implícitos ou explícitos existem modelos para todos os gostos. As classes dirigentes muitas delas direta ou indiretamente ligadas a uma heroica luta pela independência só muito excecionalmente conduziram à ‘libertação’ dos povos africanos das múltiplas cangas históricas que começam no tribalismo, prosseguem no colonialismo e mais recentemente, são a expressão de um ‘neocolonialismo’, de matriz africana, ainda eivado de contornos e disputas étnicas.

As recentes renovações em Angola e no Zimbabué são mais uma manifestação deste quadro dantesco que paira sobre África.

Quer as alterações que estão a ocorrer em Luanda, sob a batuta do novo presidente João Lourenço, ao nível das chefias empresariais, militares e de forças de segurança, quer os recentes acontecimentos políticos em Harare que levaram à substituição da clique de Robert Mugabe por elementos remanescentes da velha nomenklatura guerrilheira, parecem ser farinha do mesmo saco.

Em Angola, o exercício do poder foi durante largos anos tutelado por José Eduardo dos Santos rodeado de uma clique de ex-combatentes que ascenderam ao generalato e pelo círculo familiar e de amigos próximo. Uma nova fase – que não uma rutura - surge por esgotamento físico do líder e debaixo da sombra tutelar do MPLA que resolve manter o desgastado dirigente no topo da hierarquia partidária.
Os ‘novos dirigentes’, muito embora escrutinados pelo voto, carregam a marca genética da legitimidade oriunda da luta anticolonial transmitida pelos cessantes e o esquema foi concebido para dar continuidade às políticas que decorrem de uma mudança de rumo ocorrida nos anos 90 que centrou o novo país numa social-democracia (do tipo africano) e ostracizaram alguns ‘compagnons de route’ da guerra de libertação. As mudanças operadas há poucos meses não passam de uma renovação de personagens para ocupar as cadeiras do poder, sem que indiciem novos programas (políticos e económicos). É uma reedição do paradigma que os portugueses (os mais entrados na vida) conhecem: “renovação na continuidade”!.
Os problemas de desenvolvimento angolano passam pela diversificação da economia libertando o País da dependência do petróleo e em menor escala dos diamantes. Este diagnóstico aparece à luz do dia como consensual.
Ora, temos assistido a um ‘rolar de cabeças’ ou se quisermos a um refrescar de dirigentes mas será difícil encontrar como subjacente a essas mudanças um plano de desenvolvimento económico que passe além das meras e genéricas declarações de intenções.

No Zimbabué, o ancestral dirigente Robert Mugabe, diminuído nas suas capacidades de liderança devido à provecta idade e fustigado pelo descalabro económico a que conduziu o País, tentou doar (transmitir) prerrogativas políticas (sucessórias) à jovem companheira de vida, levando a ortodoxa guarda pretoriana oriunda da guerrilha, sentada no cavalo do poder e possuidora de pergaminhos irrevogáveis a retificar, isto é, a abortar, o inusitado desvio feito à sua revelia e eivado de emotivas afinidades conjugais, estranhas à batuta dominante do partido ZANU-PF.
Existe desde a década de noventa um ‘conflito sobre a terra’, relativo à sua posse e à imposição de mecanismos de devolução à burguesia pós-colonial nascente, com drásticas consequências sobre os processos de produção agrícola (tabaco e algodão, p. exº.) que não foi politicamente resolvido, seja pela desorganização, seja por acidentes naturais (secas). 
Esta situação de descalabro latente que levou à destruição das estruturas agrícolas coloniais mas deu força política aos dirigentes da ZANU-PF, e nomeadamente a Robert Mugabe,  insere-se numa postura anticolonial quixotesca. Destruiu toda a estrutura produtiva neste sector lançando o País numa prolongada recessão e originou uma extensa mancha de fome que a par de uma galopante inflação fustigou as populações e inclusive motivou a suspensão de emissão de moeda própria (um símbolo de soberania) para adoção de títulos estrangeiros.

Concomitantemente, as variadas indústrias de mineração (ouro, ferro, amianto), um outro importante vector económico, está dependente dos países vizinhos (nomeadamente a África do Sul), é controlado por multinacionais que operam em África e este sector industrial não foi capaz de segurar o descalabro agrário, reverter a recessão e consequentemente de travar a espiral inflacionária,  impulsionando o crescimento.
A libertação colonial trouxe graves consequências económicas causadas por inúmeros erros de gestão económica, por uma endémica corrupção que promove o saque de riqueza e a endossa a uma emergente burguesia pós-colonial insaciável. Este que não um facto inédito, bem pelo contrário, e esta situação mostra-se transversal a muitos dos novos países africanos nascidos de diferentes processos de descolonização.

A substituição de dirigentes operadas no Zimbabué foi mais um ajuste de contas interno – na década de 80 já tinham ocorrido confrontos entre a ZANU de Mugabe e a ZAPU de Nkomo - e não revela qualquer plano de reativação da economia, não existindo indícios que permitam vislumbrar uma caminhada para o desenvolvimento e uma melhor distribuição da riqueza e os dirigentes do ZANU, que substituíram do decrépito Mugabe, mais parecem apostados em continuar a distribuir o bolo do produto interno pelo restrito leque de fiéis apaniguados e consolidar compadrios e cumplicidades.
A ‘dança de cadeiras’ nestes dois países africanos só muito remotamente poderá ser entendida como uma mudança ou como uma rutura (golpe). De novo só a metodologia de mudança que abandonou as cruentas revoltas e golpes militares em que os perdedores eram sistematicamente dizimados. Hoje as ‘transições’ – todas justificadas à volta do combate à endémica praga da corrupção, do crescente nepotismo e da ‘restauração’ de liberdades - são mais pacíficas e as ‘limpezas político-partidárias’ (e de personalidades) foram substituídas por imunidades ad vitae, para os apeados e respetivas ‘famílias’ (de sangue ou de grupelho), absolutamente indistinguíveis de amnistias ad libidum.

De resto, o desenvolvimento económico, a justa repartição da riqueza e o assegurar de liberdades fundamentais são pormenores despiciendos subjugados à volta de uma estabilidade que não se diferencia de velhos esquemas (neo)coloniais e que, desde tempos imemoriais, acorrentaram África ao subdesenvolvimento. Um continente reservado à prossecução (adaptada pelas novas tecnologias) do saque de matérias-primas.
É por esta razão que hoje as velhas potências coloniais (europeias) estão a perder terreno face aos gigantes asiáticos (nomeadamente a China).

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