UCRÂNIA ou nada de novo (…ou de bom) na frente ocidental


De novo a Ucrânia. Enquanto a situação interna deste país permanece tensa e confusa no contexto internacional digladiam-se um emaranhado de influências políticas, económicas e financeiras entre a UE (com o apoio norte-americano) e a Rússia. Aparentemente, este frisson tem como leitmotiv acordos comerciais e de negócios (onde a dependência energética ocupa um lugar central).
Todavia, é cada vez mais evidente que, para além da espuma nacionalista que inunda a crise ucraniana, existe na forja um projecto político emergente, muito extenso e de grande impacto, alimentado por Vladimir Putin e que é o eixo da política externa russa. Esse projecto parece ser a resposta a negligências várias que distorcem o ‘projecto europeu’ e pode ser condensado na percepção de que a trajectória europeia menosprezou o conceito de uma ‘Europa do Atlântico aos Urais’. Quando De Gaulle no final da década de 50 lança em Estrasburgo o repto de que ‘uma Europa do Atlântico aos Urais decidirá o destino do Mundo’, embora ainda o mundo vivesse uma situação bipolar de guerra fria, esta concepção revela à posteriori uma notável clarividência política.
O Mundo mudou no início da década de 90 com a ‘implosão’ da URSS e o efeito de arrastamento envolvente dos países que gravitavam à sua volta. Aparentemente, criaram-se condições políticas objectivas para concretizar a estratégia gaulesa. Todavia, o caminho foi outro. Talvez por influência da Alemanha (que após a ‘reunificação’) quis ser a ‘locomotiva europeia’, sem concorrentes.
Os temores da Alemanha sobre a possibilidade de uma marcada influência russa no Ocidente são antigos e recorrentes. Têm condicionado a política europeia desde o final do século XIX (nomeadamente o Congresso de Berlim de 1878 onde pontificaram as ideias de Bismark). A Alemanha ou, mais concretamente, as diferentes metamorfoses do ‘imperialismo alemão’, estiveram no centro das duas guerras mundiais que devastaram a Europa no século XX. E no final do século XX a ‘dissolução’ do poderio soviético (e dos países do Pacto de Varsóvia) não foi acompanhada da reversão (ou a eliminação) de um ancestral ‘medo que os russos batessem à porta de Berlim, Paris ou Londres para impor os bárbaros costumes boiardos’. Do lado ocidental, já sob a batuta de Berlim (e muito longe dos pressupostos iniciais do Tratado de Roma) começa a ‘construir-se’ uma união económica com laivos de um incontrolado e dominador ‘germanocentrismo’. A Rússia foi deixada de fora deste ‘projecto europeu’ que - vítima de múltiplos pragmatismos e prisioneiros de ideologias ultraliberais - entrou em descontrolada aceleração para, logo de seguida, descaracterizar-se e passar a viver 'dias difíceis'. É já em pleno século XXI (a partir de 2001) que surgem preliminares tentativas de abordar este ‘conflito histórico’ com a realização dos discretos ‘Diálogos de São Petersburgo’ entre o ex-chanceler Gerhard Schröder e o (ex e actual) presidente Vladimir Putin. Hoje é possível fazer o saldo destas tentativas de ‘concertação europeia’ (ou russo-germânicas): – zero!.
No presente, a polaridade de interesses imperiais, de dominação económico-financeiros e politicamente hegemónicos que afectam (infectam) um vasto projecto europeu passam, transitoriamente, pela Ucrânia. Mas a estratégia já não se confina à Europa nem depende dela nos seus pontos essenciais.
Vladimir Putin joga, em Kiev, um estratégico e delineado plano de futuro e de desenvolvimento (para a Rússia). Decidiu virar costas à Europa (viu-se 'isso' na recente cimeira de Bruxelas) e projecta a sua política e os negócios no estrangeiro num emergente mas dominante e hegemónico ‘mercado euroasiático’ (a desenvolver entre a Europa de Leste e a Ásia) capaz de integrar a Rússia e algumas das ex-repúblicas soviéticas em concertação (comunhão) com os países asiáticos emergentes (incluindo a India e a China).
Provavelmente, os ‘distúrbios de Kiev’ - cuja solução óbvia seria a criação de equilíbrios ente a Rússia e a EU - deverão ser entendidos como a abertura dos jogos que, no futuro, vão decidir o destino da Europa (enquanto resultante do actual e contestado modelo 'puritano e monetarista') ou, então, estarão a ser subavaliados como se fossem uma inofensiva ‘escaramuça’ (à volta deste mesmo tema).
A ameaça de ‘implosão’ de uma União Europeia, esculpida sob o ‘modelo germano-teutónico’ e calvinista, tornou-se real e as recentes posições (orquestradas em Berlim em coordenação com Washington) sobre a situação ucraniana mostram uma preocupação e um temor excessivos para um problema meramente local ou regional.
A ameaça é nitidamente maior e atinge o nebuloso conceito de Ocidente para dar lugar a nova fase de ‘dominação orientalista’ (cada vez mais despida da aura misteriosa e distante de academismos versando línguas e culturas) que aparece apostada no destronar do ‘eurocentrismo’ até aqui dominante, mas assustadoramente decadente, como de resto a incapacidade da UE em lidar com a presente crise económico-financeira, demonstra à saciedade.
A Rússia parte oriental da Europa (na concepção gaulista), mas excluída o espaço comum europeu, reúne condições para ser um dos ‘pivots’ de uma alteração qualitativa das políticas (europeias e mundiais) em que a ‘questão ucraniana’ pode, muito bem, ser o rastilho de uma mudança eminente onde a Europa de Leste (Moscovo) decidiu afrontar e disputar a liderança à do Norte (Berlim).
A angustiante dúvida – nomeadamente para os países europeus ‘periféricos’ que vivem à margem da definição das questões estratégicas ‘globais’ - é saber se esta ‘mutação’ ocorrerá pacificamente ou se estamos no dealbar de um novo ‘conflito mundial’.

Comentários

Guia disse…
Que pena este seu texto não ser lido num jornal "perto de nós!"É que os media de toda a europa - e tenho visto e lido muitos - reduzem o conflito aos "maus" do governo e os "imaculados" da oposição...quando andam todos a defender os seus interesses, e não considero os do "Ocidente mais puros do que os do "Oriente"

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