As praxes e a tradição

As associações de estudantes estão contra o fim das praxes, tal como os carteiristas, se lhes dessem guarida mediática, estariam contra a proibição de assaltos. Foram precisas várias mortes, no que pareceu ser um ritual iniciático de acesso ao sinédrio das praxes, para que a opinião pública e a comunicação social lhes dessem a merecida atenção e a inexorável reprovação.

As autoridades académicas e policiais devem estar à altura da tragédia que matou jovens na praia do Meco. Só a dimensão foi maior do que acontece anualmente e mais débil a cumplicidade que afastou do espaço mediático graves incidentes de outros anos.  

Em primeiro lugar ninguém pode ser juiz em causa própria. As praxes não podem ser uma reminiscência do foro académico que, por razões de classe, tornava inimputáveis os estudantes. Não podem eximir-se ao escrutínio da opinião pública, à ação da polícia e ao veredito dos tribunais.

Quem viu as cenas da RTP, filmadas com autorização de vítimas e algozes, em cenas de uma degradação e baixeza moral, que indignariam o mais boçal dos marginais, não pode remeter-se ao silêncio e pactuar com a manutenção de tradições de refinada degradação ética, cívica e social.

Não foi por acaso que o salazarismo acolheu as praxes. Eram escolas de quadros servis que exoneravam a honra e promoviam a obediência. Depois do 25 de Abril, quando os ideais galvanizaram a juventude, pareciam condenadas ao sumiço como um arcaísmo deprimente. Ressurgiram com o regresso da velha direita ao poder e agravaram-se com a entrega do ensino superior à especulação comercial.

O mais alto dirigente académico, da mais antiga universidade portuguesa, presidente da direção-geral da Associação Académica «acredita que deve haver regulação para não haver abusos» e nem sequer admite a eventual extinção.  Pelo contrário, acha «difícil impor limites a uma coisa que já tem séculos de tradição». É destas cabeças que saem os futuros governantes, que não desmerecerão os atuais.

Uma tradição pode ser boa ou má mas, justificar o que quer que seja com a tradição não é de um universitário, é de um mentecapto. É de quem não sabe e jamais pensou que a escravatura, a pena de morte, a tortura e todas as ignomínias já foram e continuam a ser uma tradição que urge erradicar.

Eles não sabem nem sonham que, cada vez que alguém se deixa aviltar, planta em si os germes que hão de florescer em futuras humilhações, com que se vingam.

Comentários

passotrocado disse…
O Dux de Coimbra Tem 24 matriculas na Universidade!
jrd disse…
Estes rituais de (des)integração são manifestações aberrantes, que humilham os que não tem alternativa senão "participar", com receio de represálias, enquanto os dux (Duce) assumem posturas irracionais que mais parecem saídas de um "ovo da serpente".

Abraço
Agostinho disse…
Aos defensores de praxes "com séculos de tradição" deveria ser-lhes feita a proposta de regressarem à idade média onde estavam à vontade para dar livre curso à sua bestialidade.
Quando vejo essa gente, de capa e batina, a pedir na rua para se embebedarem ao ponto de irem parar às urgências hospitalares em estado comatoso, salta-me completamente a "tampa".
e-pá! disse…
O mais elementar bom senso recomenda que a 'espiral de violência' (física e psicológica) que se apoderou da praxe precisa de ser sustida.
Esta a 'tradição' (humanitária e democrática) a que temos de submeter a praxe.
Existem múltiplos campos para desenvolver e estimular a integração dos estudantes universitários. Por exemplo: as associações estudantis e os organismos desportivos e culturais para aonde poucos são 'aliciados'. Assim, esta é mais uma questão de impacto social a que não se pode colar o sacrossanto rótulo neoliberal: 'não existem alternativas'.

Aliás, o termo latino traditio significa simultaneamente tradição e traição.
Esta foi a linha de fronteira que a praxe terá percorrido desde o seu ressurgimento e inusitada expansão a partir dos anos 80.
O 'renascimento tradicionalista' concomitante com a retoma de um conservadorismo (político e social) apressa-se a(re)instaurar a praxe como mais um instrumento de criação de 'novas elites' (a vertente civilista são as 'Jotas') e foi, de imediato, acarinhada pelo boom proliferativo de universidades privadas (cuja história 'sem tradição' está por fazer), com o intuito de empolar e 'justificar' um estatuto identitário que, de facto, lhes escapava (e faltava). Este o produto vendido como 'tradição' mas que não passa de uma 'traição'.
De facto, é inconcebível e inaceitável que o Estado confira aos maiores de 18 anos o estatuto de cidadão e a condição de responsável (pelos seus actos e escolhas) e uma 'tradição' lhos pretenda retirar (ou condicionar) baseando-se em espúrios (pre)conceitos hierárquicos, sexistas, conformistas, 'normalizadores', etc., que mais não fazem do que esconder 'violências' (de todo o tipo) e que se confundem com um instrumento de 'domesticação humana', em nome de uma virtual 'integração'.

Esta é, portanto, a altura de contextualizar a praxe trazendo a discussão para fora do campus académico, envolver a sociedade no debate e em conformidade tomar medidas, i. e., agir de acordo com a 'tradição democrática' que no seu códice genético - pelo menos desde a Revolução Francesa - prescreve o banimento das excepções.

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