CENTRO DE REABILITAÇÃO DO NORTE, actividades misericordiosas e açambarcamentos…


Há 3 dias o JN dava a seguinte notícia link que abordava um ainda desconhecido ‘um pacote legislativo que abre ao setor social a gestão de unidades públicas de saúde’ e sem entrar em grandes pormenores anuncia a ‘concessão do Centro de Reabilitação do Norte à Misericórdia do Porto’.
É exactamente sobre essa concessão, a sua fundamentação, as suas motivações, os seus meandros e inevitavelmente as suas consequências que nos motiva a dedicar algum tempo a este assunto.

Comecemos pelo princípio:

Reza um relatório (aprovado) há alguns anos (Março de 2002) sobre a rede de referenciação hospitalar de Medicina Fisíca e de Reabilitação link.
Os Centros de Reabilitação devem funcionar em perfeita articulação com os Serviços de Medicina Física e de Reabilitação dos Hospitais da Região e com as diferentes Unidades integrantes dos cuidados extra-hospitalares.
Os doentes a internar nos Centros de Reabilitação devem ser obrigatoriamente referenciados pelos Hospitais que compõem a Rede de Referenciação de Medicina Física e de Reabilitação” …
Essa rede supõe a existência dos seguintes patamares: “Centros de Saúde e Hospitais de Nível I; Hospitais Distritais Gerais e Centrais da plataforma B; Hospitais Distritais Gerais, Centrais e Especializados da plataforma A e Centros de Reabilitação”…
Quando Paulo Macedo, há 1 ano e meio (Fev. 2012) de visita ao Centro de Reabilitação do Centro/Tocha apontou (estes Centros) como sendo “um dos pilares essenciais dos cuidados prestados pelo Serviço Nacional de Saúde”, tanto mais que é “uma das poucas unidades de saúde existentes com internamento na área da reabilitaçãolink, estava a dar-lhe a ênfase real e estratégica.

Estas notas introdutórias para enquadrar o que se está a fazer com a dita concessão serão obviamente atacadas com o argumentário habitual (actual situação financeira do País, restritivas condições de financiamento do SNS e o carácter finito dos recursos). Todavia, em nada alterarão a importância destes Centros do ponto vista de uma estratégia nacional para o SNS.
Uma rede de referenciação não é uma teia homogénea e deve – sempre - ser integradora (deve integrar como foi previsto os ‘cuidados extra-hospitalares’) para não cair em tentações discriminatórias, não promover ‘cultos hegemónicos’, não erguer ‘barreiras’ que em última análise incidem ‘cegamente’ sobre o doente…

Mas o Estado terá de desempenhar necessariamente, para além do papel de financiador, uma acção reguladora forte e equilibrada porque neste âmbito colocam-se melindrosos problemas de acessibilidade já que existe um denominador comum muito sensível envolvendo a deficiência dos cidadãos e que, à primeira vista, parecem ficar gravemente comprometidos no dia em que o Estado abdicar de responsabilidades na área assistencial e de prestação (directa) de cuidados. A prática tem demonstrado isso.

Mais: este novo Centro de Reabilitação foi financiado (em 70%) pelo QREN (Quadro de Referência Estratégico Nacional) e como parece implícito nas condições apresentadas para o seu financiamento, as opções quanto à sua gestão, enquadramento e funcionamento deverão ser eminentemente estratégicas e ‘nacionais’… e não necessariamente regionais ou misericordiosas.
Ora considerando o MS que os Centros de Reabilitação regionais são parte de um dos pilares essenciais do SNS como afirmou Paulo Macedo na Tocha link o que justifica a sua entrega – depois de executado o esforço maior de investimento – ao sector social? 
Alguma questão 'estratégica' que o Ministro se exime de publicitar?
O que, de facto, está a passar-se no domínio de sucessivas ‘transferências’ entre o Estado e o sector social que integra a maioria das IPSS ‘controladas’ pela toda-poderosa União das Misericórdias?

A devolução 'rápida e em força' de Hospitais - onde se fizeram avultados investimentos públicos em relação à sua dimensão - às Misericórdias tem, como foi divulgado, um calendário previamente traçado: Até ao fim do ano, a gestão de seis hospitais de pequena dimensão são transferidos para as Misericórdias. São eles Fafe, São João da Madeira, Anadia, Ovar, Cantanhede e Serpa. Em 2014 será a vez de Vila do Conde, Póvoa de Varzim, Santo Tirso e Barcelos. link
Trata-se, no essencial, de uma envolvente e truculenta ‘campanha do Norte’. Não é só a questão da ‘transparência de mercado’ invocada pela APHP link, já que se trata de um pilar social – constitucionalmente definido e balizado - onde a existência de um ‘mercado livre’ é uma pura aberração neoliberal. O que está em questão são espúrios ‘mecanismos de transferência’, de diluição das inalienáveis responsabilidades do sector público para um perverso ‘mercado de saúde’ - para além disso constitucionalmente condicionado - travestidos de uma pré-anunciada ‘excelência’ de gestão, com divagações sobre vantagens financeiras, circunstâncias que nunca foram demonstradas, nem são determinantes para a avaliação dos obscuros processos em desenvolvimento.

Acresce a estas ‘manobras’ o que se está a passar no domínio da rede de Cuidados Continuados Integrados onde a posição das Misericórdias (directamente ou por interpostas IPSS) é dominante (> 60% - enquanto o Estado tem uma participação residual à volta dos 10%) link.
De facto, não estamos perante uma simples mudança de paradigma que passe por critérios redistributivos de uma excessiva carga de prestação pública. Que se conheça não existem estudos rigorosos e credíveis sobre o impacto desta permanente ‘desnatação’ do SNS. 
Estamos, isso sim, perante um despudorado fenómeno de ‘açambarcamento’, um verdadeiro ‘assalto’ ao sector público que se fundamenta em enviesadas concepções de eficácia (dependentes de contratos directos de favorecimento), de adulteração dos instrumento de assistência sanitária sob uma hipotética concorrência público-privada cuja existência no actual quadro institucional é mais do que duvidosa e, o que será mais danoso por acarretar consequências futuras, perante o entorpecimento (relaxe) da acção reguladora do Estado, enquanto financiador, já que as IPSS ‘escapam’ (por legislação específica via Concordata) ao crivo fiscalizador e de supervisão do Estado (que como sabemos está longe de ser uma realidade). E quanto à existência de um concurso público e a um inerente caderno de encargos que estabeleça metas e objectivos – estamos conversados.

A anexação do CRN é a mais recente nuance da escalada cirúrgica das Misericórdias ao SNS. Ao nível nacional para os Centros previstos na rede o Estado ficaria reduzido ao da região Centro (Tocha). Lisboa (Alcoitão) pertence à Misericórdia de Lisboa, o Sul (S. Brás de Alportel) é uma PPP em fim de contrato (que eventualmente poderá cair na alçada de alguma Misericórdia). 
Quando se observa em pormenor o panorama de reabilitação do Norte percebe-se porque razão surge o grande interesse na gestão desta nova unidade pela Misericórdia do Porto. Este CRN é um sério concorrente ao serviço de Medicina Física e de Reabilitação do Hospital da Prelada, pertencente à mesma Misericórdia, com contratos com o SNS  e que, até ao presente, tem sido ‘um dos maiores ao nível nacional e o maior da região Norte do país’. É o único serviço de MFR no Norte do país que tem um internamento ‘dedicado’ à especialidade, digno desse nome link. Vemos assim que, sem grande esforço financeiro, sem delongas, como a betesga consegue ‘anexar’ (engolir) o Rossio.
É este o 'ambiente' de cooperação entre o Estado e o sector social no domínio da Saúde que aguarda decisão do Conselho de Ministros.

Para finalizar - e porque é uma tirada caricata - só o delírio megalómano e caciquista de Luís Filipe Menezes, em vésperas de eleições autárquicas, poderia introduzir factores humorísticos a esta degradante situação. Assim: “O presidente da Câmara de Gaia, Luís Filipe Menezes, quer ver o Centro de Reabilitação do Norte (CRN) gerido por uma parceria internacional. Menezes prevê que “muitos europeus de classe Avenham ao CRN de Gaia, para ali serem intervencionados, e fazerem a recuperação, em vez de irem deixar ‘mais-valias aos EUA, por exemplo’. Acrescentou sem rebuço: ‘A nossa vocação pode ser um bocadinho a de uma Florida da Europalink. Só faltou dizer Ámen.
Em contraponto com esta delirante imagem da Florida a entrar pelo porto de Leixões adentro a Misericórdia do Porto adiantou-se com uma proposta ‘florida’ e uma solução obviamente 'florescente' (porque a misericórdia divina extravasa largamente os conceitos imateriais e não vive propriamente de ‘floreados’) link.

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