Para meditar e recordar o notável jornalista

Gostava de lembrar aos meus Amigo o que escrevi, do coração, há sete anos e onze meses:
Esta febre que remove montanhas

A ministra elogiou‑se: foi a primeira vez que, antes de se lançar uma obra como o futuro (?) aeroporto de Lisboa, se fez um estudo de impacte ambiental. Fiquei contente por saber que há quem torna decisões que merecem elogios – mesmo que os elogios venham de quem toma as decisões. É uma espécie de dois‑em‑um da felicidade de quem go­verna.

Confesso que, para ficar contente pela ministra, tive de quase afogar em chá calmante das bruxas aquela parte de mim que se eriça toda em pele de galinha e urticária quando ouve falar de ambientalismo: é a parte de mim que cada vez mais se convence de que ecologia é a ciência que estuda o eco depois de eliminada a voz humana que lhe deu origem.

Não me esqueço do modo como, na Guerra do Golfo, a máquina de propaganda norte‑americana conseguiu virar a opinião pública: antes do conflito aberto e até ao fim dos primeiros quinze dias de bombardeamentos, havia manifestações diárias protestando contra a possibilidade de soldados norte‑americanos morrerem em terras alheias por causas estranhas; mas o Iraque rebentou os poços petrolíferos marítimos do Koweit e bastou mostrar imagens (de arquivo!) de uns passarocos mergulhados em óleo para logo saírem manifestações pedindo a degola de um Saddam que faz tanto mal ao ambiente!

Contou‑me um camarada que acompanhou uma delegação parlamentar europeia a uma ilha fronteira à Bósnia, durante a guerra entre jugoslavos: os deputados dos partidos tradicionais foram saber dos mortos e dos vivos e ainda volveram os olhos de pena para um mosteiro milenar destruído; os verdes correram a saber de uns ninhos que podiam ter sido atingidos por bombardeamentos – e nunca dirigiram a sua atenção às pessoas ou à sua obra.

E junto o meu riso amargo ao do ex‑ministro Ferreira do Amaral, que, durante a construção de uma destas grandes estradas à roda de Lisboa, teve de ouvir a grita de ecologistas que aqui‑d'el‑rei que cortam a passagem às rãs; o ministro, tremelicando de pavor perante a eco‑ira, mandou fazer uns túneis sob a estrada, para as rãs passarem, como exi­giam os eco‑histéricos. Resultado: acabaram‑se as rãs – as cobras ficaram à espera delas à saída dos túneis...!

Estudaram imenso e decidiram a localização do aeroporto de Lisboa. Havia danos irreparáveis numa opção, havia danos menos irreparáveis na outra. Fica na Ota, tudo bem. Li, ouvi e vi as notícias e tudo me pareceu conforme, até que, em meia dúzia de palavras, alguém disse que, na Ota, vai ser preciso deitar abaixo o monte Redondo... O monte Redondo?

Já não houve chá calmante das bruxas que chegasse sequer para lavar a escuma de raiva que começou a escorrer por aquela parte de mim que rosna aos fundambientalistas. O monte Redondo é um mamelão, uma grande colina redonda que fica a noroeste, creio, da pista da Ota. É um acidente natural perfeito que faria morrer de inveja os belgas, que tive­ram de erguer uma colina artificial com um terço do tamanho do monte Redondo para ali colocarem um leão em bronze e evocarem a batalha de Waterloo.

O mamelão da Ota não é só perfeito e lindo: está embebido do suor de milhares de cadetes e recrutas, que, anos a fio, desesperadamente o subiram e vitoriosamente o desceram; aquele redondo monte, maneirinho visto da estrada, mas imponente e temível para quem se abeira do sopé, está revestido de um sedimento de memórias de sofrimento e de glória dos milhares de jovens que o tiveram por inimigo a conquistar e hoje o trazem no peito como a grata recordação dos momentos em que foram capazes de ir mais além de si próprios.

E, agora, vêm uns sábios de gabinete, acometidos daquela febre que faz remover montanhas, dizer que, tendo estudado ambientalmente a coisa – o monte Redondo está a mais. Corte‑se pela raiz! O que esse monte diz às pessoas não conta para nada: corta‑se! Ainda se fosse o habitat da tontinegra roxa de rémiges cambadas ou houvesse por ali unhada do defecanosaurius escatofagicus – aí sim!, paravam logo as obras. Agora um monte ser habitat de memórias, sonhos e pesadelos de pessoas, ná!, nunca se viu!

Exijo da Força Aérea que, antes que seja concretizada a barbaridade de arrasar o mamelão da Ota, convoque uma romagem de todos os que o escalaram – para o fazerem pela última vez. Talvez aquele monte condescenda, sob o peso dos milhares que o pisarem, a deixar‑se ir abaixo sem se sujeitar ao vexame de ser esventrado e destruído pelos catrapilos dos que têm amor aos ninhos – mas têm o mais olímpico dos desprezos pelas pessoas.

(Manifestos & Exageros, 14-7-99) OSCAR MARCARENHAS*
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* Ponte Europa: Onde andará este excelente prosador, referência ética do jornalismo, perdido do convívio dos seus leitores?

Comentários

Anónimo disse…
Não me digas que se converteu às rãs?!
Acontece ao mais pintado!
Presente !

Aqui está um cadete que subiu ao mamelão, carregado que nem um burro, gostou e sobreviveu.

E e seguida foi para a Serra de Montejunto onde andou uma semana a pé e a dormir nos eucaliptais.

E não me fez nada mal !
CA disse…
Antes de se escolher a Ota por razões ambientais há que ver o que é que isso vai custar às pessoas. Quando se fecham maternidades e urgências por causa de meia dúzia de euros, terá sentido gastar 2000 ou 3000 milhões de euros a mais para poupar uns sobreiros que pouco tempo depois são abatidos para dar lugar a um empreendimento turístico?
Anónimo disse…
Ele não se perde. Certamente quue fora da ribalta continua a fazer o que melhor se faz em Portugal: escrever, viajar, guardar memórias, quem sabe? Ele sabe.

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