A praxe, a latada e a indigência mental


Vi as ruas de Coimbra pejadas de caloiros, tocados por colegas mais adiantados nos estudos e na degradação, com os carrinhos de compras roubados nos supermercados. O vestuário feminino só se destacava pela homogeneidade, parecendo uma farda exótica. Não havia, nisso, nada a censurar, para além do gosto de fazer parte do rebanho.

Já o furto de centenas de carrinhos, salvos das águas do Mondego pela polícia, pode ser o gesto de humor capaz de hilariar um batráquio, mas incapaz de ajudar à integração de quem quer que seja no Ensino Superior, salvo para perpetuar a praxe.

Os estudantes prestes a atingir o grau académico cujo uso autóctone, no estrangeiro, os confundiria com os médicos, prestaram-se a escrever frases de tão baixo nível, para as caloiras gritarem em coro, que não refletem o teor de cerveja, revelam a baixeza ética e o gosto da humilhação.

O testemunho sobre as frases gritadas, à guisa de refrão, não permite dúvidas. Duvido, sim, que as caloiras sejam o que diziam, ainda que queiram o que berravam; que jovens de 18, 19 ou 20 anos, não se dessem conta da humilhação a que se sujeitaram; que não tivessem discernimento para a recusar; que fosse o começo da integração universitária e não o fim de uma oportunidade para a formação de uma personalidade para a cidadania.

A praxe promove a renúncia ao amor-próprio e à coragem cívica, sob a capa da alegada tradição, cada vez mais boçal e reacionária.

Comentários

e-pá! disse…
É difícil compreender a evolução das Latadas enquanto festividade académica instrumental para promover a integração dos caloiros na Universidade e na cidade.

Quem andou por Coimbra nos anos 60 e aí permaneceu depois da sua formação e - com um inevitável distanciamento - observou que a evolução destas festas
estudantis tem um percurso errático. Nada do que são as 'latadas modernas' tem a ver com o 'antigamente' (anos 50, 60 e 70).
A partir de 74 o apogeu das 'festividades' tinha necessariamente de mudar e foi mudando sem que os cidadãos e os antigos estudantes tenham acesso a ferramentais decifradoras de um caminho evolutivo - em liberdade.

Todavia, as Latadas tem lastro um histórico, onde se verifica que a diversão, o entretinimento e o convívio não são 'brincadeiras' subsidiárias de irresponsáveis 'irreverências' mas tem por detrás importantes componentes culturais e sociais imprescindíveis à formação dos estudantes e dos cidadãos.
Cada um dos que passaram por Coimbra terá uma visão própria do que representam (ou representaram) as festividades académicas.

Vou tentar resumir a minha 'visão' (enquanto estudante) das Latadas.
No período imediato depois do 25 de Abril começou a minha vida profissional e de certo modo perdi o fio à meada.

O 'cortejo da latada' foi, durante o Estado Novo, uma manifesta expressão de liberdade, de crítica política e social a um regime genericamente hostil aos estudantes (enquanto seres livres 'associáveis'), de questionamento da Ciência e da sua Universidade (enquanto símbolo de ensino livresco, dogmático e fechado ao Mundo) e permitia contestar em termos sociais(e na rua) o elitismo que impregnava o sistema a chamada 'Educação Nacional'.
Para além disso os estudantes ao juntarem-se e virem para a rua, abandonavam os bafientos claustros e as obscuras salas de aula e as Latadas sempre foram o rastilho para um convívio e interação com a os concidadãos conimbricenses (que também respiravam o mesmo clima opressivo).

A centralidade destas comemorações residia na Associação Académica e toda esta manifestações recetivas aos caloiros, funcionavam como fontes de recrutamento para o que o regime chamava 'atividades circum-escolares', ou seja, as secções culturais e desportivas, os Organismos Autónomos, etc. Ou seja, processava-se a brusca transição entre atividades tuteladas (MP) e a efusiva autonomia para gerir e definir as práticas sociais e culturais com vista a uma formação integral.

As latadas encerravam com um vistoso "Sarau Académico" onde num ambiente de diversão e de comprometimento cultural voltavam a encontrar-se os estudantes, académicos (poucos) e os ditos 'futricas' ( política, social e culturalmente 'comprometidos').

É esta a visão (a memória) que - enquanto um 'cota' das gerações dos anos 60 - retenho das 'Latadas'.

O 25 de Abril veio - e bem - alterar muitos dos pressupostos que informavam estas festividades e necessariamente introduzir alterações e dar novos âmbitos a esta tradição coimbrã e 'coimbrinha'.

Tudo isto para manifestar a minha manifesta dificuldade ou mesmo a total incapacidade para compreender o que as Latadas significam em termos estudantis, sociais e culturais, nos tempos que correm.
Tratar-se-á somente de manter a tradição instrumentalizando para o efeito a controversa 'praxe'?.
Ou existe algo mais?

Declaro, desde já, a minha total incapacidade para entender as acuais Latadas, até porque, a vida, a profissão e o tempo me foram afastando das festas estudantis... e portanto, este comentário é simultaneamente um pedido de ajuda.
Célia disse…
"A partir de 74 o apogeu das 'festividades' tinha necessariamente de mudar e foi mudando sem que os cidadãos e os antigos estudantes tenham acesso a ferramentais decifradoras de um caminho evolutivo - em liberdade."

A academia de Coimbra entrou em luto académico aquando da inauguração da faculdade de Matemática, em 1969, por Américo Tomás. Com o 25/4/74, o luto académico continuou porque os estudantes eram contra um ensino elitista, daí que as capas pretas a adejar não eram bem vistas porquanto eram marca dum tempo que se devia combater. Os "corvos" voltaram à cena bem no final da década de 70. A partir dos anos 80 o acesso à universidade popularizou-se, felizmente, e com isso começou a intensificar-se o uso do uniforme de doutor e as aberrantes praxes. Este recruscedimento das praxes, infelizmente, tem muito a ver com um certo deslumbramento, um novo-riquismo da parte de jovens que são a primeira geração de algumas famílias a aceder ao ensino secundário.

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