A "REFUNDAÇÃO DO ESTADO"

A Constituição da República sempre foi um espinho cravado na garganta da direita, sobretudo na parte relativa aos “direitos e deveres económicos, sociais e culturais”. Este governo neoliberal é particularmente sensível nessa matéria.

A direita dos interesses – passe o quase pleonasmo - , representativa do grande capital e das grandes fortunas, que tem neste governo o seu expoente máximo, procura agora aproveitar o pretexto da crise económica e financeira para subverter a ordem constitucional, procurando por todas as formas atacar, contornar ou mesmo anular os referidos direitos e deveres. É o que chama, num eufemismo diáfano, “refundar o Estado”.

É compreensível. Os ricos não precisam de Estado Social. Em caso de doença, recorrem a luxuosas clínicas privadas; no que toca à educação, preferem as seletas escolas particulares, onde os seus filhos não têm de misturar-se com o “povinho”; não precisam de segurança social na velhice, pois o seu próprio património pessoal e respetivos rendimentos lhes garantem uma velhice mais que confortável.

Além disso, sentem-se duplamente prejudicados pela existência desses direitos; por um lado, porque têm de pagar impostos para custear as despesas com os serviços públicos de saúde e de ensino; por outro lado, porque esses serviços lhes diminuem as possibilidades de ganhar dinheiro à custa das doenças e das necessidades escolares do comum dos cidadãos. Diminuem-lhe as “oportunidades de negócio”; retiram-lhes dois “nichos de mercado”; dois “clusters”.

A ideologia da direita, correspondente aos seus obscuros e gananciosos interesses, é a do “cada um por si e salve-se quem puder”. Por isso encara os serviços públicos de ensino, saúde e segurança social, como mera “despesa”, senão mesmo “desperdício”.

Tudo isto é claramente explicitado por uma eminente ideóloga dessa direita, a Dr.ª Manuela Ferreira Leite, em recente artigo publicado no “Expresso”, que Mick Romney e o “Tea Party” americano não desdenhariam subscrever. Diz a excelsa Senhora:

“Vamos continuar a estrangular a classe média ou vamos fomentar as suas perspetivas de progresso, abrindo assim espaço à procura de satisfação de necessidades sociais oferecidas pelo setor privado, como é o caso da educação e da saúde, aliviando desse modo o nível de despesas públicas a serem pagas por impostos?
Assim, a questão decisiva na discussão do papel do Estado está na forma de limitarmos a sua intromissão na vida dos cidadãos, para que estes se libertem do jugo dos impostos e da dependência dos subsídios, o que só se consegue enriquecendo.”

Como se vê, a ilustre economista entende que o Estado, ao proporcionar aos cidadãos um serviço de saúde e um serviço de educação tendencialmente gratuitos, está “a intrometer-se na vida dos cidadãos” e a “estrangular a classe média” com impostos.

Ora os serviços públicos de saúde e de educação já existem há mais de trinta anos e os cidadãos pobres e da classe média nunca se queixaram dessa “intromissão” do Estado nas suas vidas. E só desde que este governo está no poder, e quer acabar com esses serviços, é que passaram a ser “estrangulados” por impostos, taxas, sobretaxas e confiscos de subsídios.

A propalada “refundação do Estado” não é mais que uma manobra para roubar ao povo o pouco que ainda há para lhe roubar: os direitos sociais conquistados com a revolução de 25 de Abril e consagrados na Constituição dela resultante.
Nenhum democrata, nenhum partido que se reclame do socialismo, pode colaborar nessa tentativa contrarevolucionária ou sequer “viabilizá-la” com abstenções.

Comentários

A direita usa uma linguagem que parece colocá-la na vanguarda da liberdade e da justiça social.

Tem experiência desde 1926.
e-pá! disse…
Eu diria: a direita sempre usou uma lodacenta promiscuidade semântica que sistematicamente infesta a sua retórica.
E faz 'isso', quer na política, quer na análise histórica.
Lenta e paulatinamente, apropria-se de tudo o que é avanço civilizacional para, na altura certa, num primeiro tempo o prostituir e logo depois o capturar.
Procede assim há séculos...

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